8 de mar. de 2017

Ao “nosso lugar” não voltaremos jamais! - Berenice Bento\Outras Palavras



 



“O jornalista não está incomodado exclusivamente com a revelação da Jane Fonda. Sua queixa é contra esta onda, ou melhor, tsunami de vozes múltiplas que se negam a continuar silenciando. A pergunta irônica esconde os gritos: Voltem para suas casas, fechem suas janelas, portas e não poluam o espaço público com estas insignificâncias!! Não voltaremos, Sr. Alexandre Garcia”.
Berenice Bento
 
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“E eu com isso”? Comentário de apresentador da Globo sobre estupro de Jane Fonda expõe recalques de um machismo profundamente incomodado com o tsunami feminista. Oh, que pena…

Por Berenice Bento

Aos 79 anos a atriz Jane Fonda conta que foi estuprada quando era criança. Já conhecemos os desdobramentos. As reações nas redes sociais foram de solidariedade à crítica pela revelação. O que ela vai ganhar com isso? Por que falar disso depois de tanto tempo? Por que ela não falou antes? Analisar os comentários e os debates que acontecem nas redes é importante porque, protegidos parcialmente pelo anonimato que estes dispositivos oferecem, as pessoas passam a se expor mais e, desta forma, podemos ter acesso a importantes níveis dos discursos que tecem a cultura do estupro. Não é a primeira vez que há uma explosão de comentários depois que alguma pessoa famosa conta as violências sexuais de que foi vítima. Como não lembrar Xuxa?

Com a Jane Fonda, no entanto, a postagem do jornalista Alexandre Garcia no seu twitter abriu outra camada de debates. “E eu com isso?”, foi a frase que ele postou referindo-se à revelação da atriz. Por que ele não ficou calado? Se ele não se interessa pelo estupro de Jane Fonda, porque simplesmente não ignorou a notícia e seguiu com seu trabalho? Não. Ele não foi indiferente. Em algum nível, a história de Jane Fonda o tocou, antes, incomodou-o.

TEXTO-MEIO

O que “e eu com isso?” nos diz? De certa forma, é uma expressão do profundo incômodo que atravessa parte considerável da sociedade brasileira diante do avanço dos feminismos e dos transfeminismos. Com estes movimentos aprendemos que o privado é político e que sexualidade é poder. E eu com isso? pode ser lida como uma ressignificação do “em briga de marido e mulher ninguém mete a colher”. O sacrossanto lar passou a ser visto como um espaço também marcado por violências e abusos, um espaço de poder. Foi, portanto, a voz tradicional das hierarquias dos gêneros — que reserva ao feminino o lugar inferior, penetrável, estuprável — que o jornalista representou.

Jane Fonda levou anos acreditando que ela era a culpada pela violência que sofrera. Os feminismos e os transfeminismos são os responsáveis por produzir narrativas que deslocam a perspectiva ahistórica (mitológica) das identidades de gênero. É nas relações de poder, inseridas em contextos políticos e sociais historicamente construídos, que estão as explicações para as relações desiguais entre os gêneros.

A “culpa” pode ser vista como um dos elementos constitutivos da (re)produção das violências de gênero fundada numa matriz religiosa perversa: a origem de todo mal está no feminino. E por feminino entendo não exclusivamente as mulheres, mas os múltiplos femininos das travestis, das mulheres trans e dos gays femininos. Basta ver os dados de violência contra a população LGBT para descobrir que são aqueles que performantizam o feminino os que sofrem as maiores atrocidades. Somos todas condenadas a atualizar o mito de Eva.

O jornalista não está incomodado exclusivamente com a revelação da Jane Fonda. Sua queixa é contra esta onda, ou melhor, tsunami de vozes múltiplas que se negam a continuar silenciando. A pergunta irônica esconde os gritos: Voltem para suas casas, fechem suas janelas, portas e não poluam o espaço público com estas insignificâncias!! Não voltaremos, Sr. Alexandre Garcia.

E por que só agora, aos 79 anos? Esta pergunta apareceu com certa frequência nas redes. Quem a faz talvez nunca tenha pensado sobre a relação entre vergonha e medo que forja as subjetividades maltratadas. E entre um e outro, o que impera é o silêncio. O silêncio seria a expressão da vergonha, daquilo que, socialmente, ao ser proferido produzirá julgamentos morais sobre a minha conduta que poderá provocar a minha morte social: rejeição e rompimento dos vínculos com as pessoas queridas. É o medo da dupla perda que faz a vítima silenciar.

O silêncio, nos casos de violência sexual, também acontece em contextos de guerra. Em toda guerra há a história oficial e outras que desaparecem, tornam-se escombros, sem registro de arquivo. A antropóloga Rita Laura Segato tem realizado instigantes pesquisas sobre a relação entre disputas territoriais e a violência sexual. O estupro dirige-se ao aniquilamento da vontade da vítima. O corpo é o espaço, o território, a ser conquistado, subjugado. Retirar os escombros da memória de quem foi vítima da violência sexual nos períodos de guerras ainda está por ser feito. As escravas sexuais coreanas durante a Segunda Guerra Mundial, as escravas sexuais nos campos de concentração nazistas, na Croácia, no Vietnã, na ditadura civil-militar no Brasil estão ressuscitando e ainda assustaram muito personalidades à la Alexandria Garcia.

O historiador Ilan Pappé, na sua densa pesquisa sobre a limpeza étnica da Palestina feita por Israel em 1948 (A Limpeza étnica da Palestina – Ilan Pappe, pág. 245), afirma que o capítulo dos estupros cometidos contra as mulheres e garotas palestinas ainda deverá ser escrito porque não se tem a total dimensão deste tipo de violência. No entanto, utilizando três tipos de fontes (documentos da ONU e da Cruz Vermelha, os arquivos israelenses e a história oral) ele aponta que estupros eram realizados sistematicamente. Uma dessas histórias macabras veio a público mais recentemente e conta que 22 soldados participaram do estupro de uma garota palestina de 12 anos de idade em 1948. Por dias, ela foi vítima de estupro coletivo e depois, assassinada (Jornal Há’aratez, 29/10/2003).

Fatma Kassem, pesquisadora palestina-israelense, faz um estudo com histórias de vida de mulheres palestinas idosas que vivenciaram o processo de limpeza étnica realizado pelo exército de Israel. Mais uma vez e estupro aparece. E, mais uma vez, a autora alerta para a necessidade de seguir pesquisando estas histórias, porque, segundo ela, tradição, vergonha e trauma são as barreiras culturais e psicológicas que “impedem de formar uma imagem mais plena sobre o estupro de mulheres palestinas como parte da rapina geral que as tropas judias disseminaram com tanta ferocidade ao longo de 1948 e 1949.” (in, Fatma Kassem: Palestinian Womem: narrative histories and gendered memoy, pág. 158).

Estudar o estupro como arma de guerra é difícil porque a historiografia hegemônica não está interessada nestes fatos “secundários” e o silêncio das vítimas dificulta a pesquisa. O silêncio de Jane Fonda não é substancialmente diferente do calado pelas vítimas em períodos de guerra. A cultura do estupro se alimenta e se reproduz em grande parte destes silêncios. Para produzirmos fissuras nesta cultura talvez tenhamos que adotar uma prática inversa da assumida pelo jornalista: Somos tod@s Jane Fonda!

Fonte: Outras Palavras, 8 de março de 2017. 
Foto: Jane Fonda

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