18 de abr. de 2015

Da cor ao corpo: a violência do racismo - Jurandir Freire Costa


George Jackson: Preto Revolucionária



“Agosto Negro” narra a jornada espiritual e a violenta fé de Jackson, desde sua condenação por roubar 71 dólares de um posto de gasolina até galvanizar a Família Black Guerrilla com seu incendiário livro, criado a partir de cartas, “Soledad Brother”. 


Compartilho abaixo a introdução do artigo "Da cor ao corpo: a violência do racismo", de autoria de Jurandir Freire Costa. Vale a pena ler todo o texto, acesse AQUI o artigo completo

"Há 11 anos, publicava-se em Paris as cartas de prisão de negro americano George Jacson. A Jean Genet coube a tarefa de introduzir a obra ao público francês. Introdução que, já no início, traía as expectativas do leitor, pois nada tinha em comum com os usuais prefácios ou comentários do gênero. Genet, o comentarista, tragado pela emoção do texto, despediu a pretensão da crítica, convertendo-se em aliado do combate e do amor do negro pelo negro. As cartas de Jackson, dizia ele, eram um poema de amor e combate”. 

Prefaciar o presente livro colocou-nos diante de um dilema semelhante. Perguntamo-nos, insistentemente, o que acrescentar a esta denúncia feita de depoimentos que falam por si. A autora empresta seu talento aos oprimidos. Põe a serviço do negro sua generosidade e firmeza intelectuais. E, como resultado, temos esta condenação sem mágoas, este alerta que nos martela a consciência e ecoa aos ouvidos como um grande grito de solidariedade aos injustiçados. 

Lendo este trabalho, não nos foi possível deixar de evocar a inscrição definitivamente gravada no monumento às vitimas do holocausto nazista em Paris: “Pardonne, mais n’oublie pas.” Impossível, do mesmo modo, foi abordá-lo com o olhar de quem julga mais um produto de nossa incipiente indústria acadêmica de teses. A credibilidade do que é afirmado não nasce, primordialmente, dos conhecidos passaportes para o tantas vezes insípido mundo da respeitabilidade científica: “rigor teórico”, “coerência conceitual”, “fidedignidade do fato
empírico”, etc. Aqui, a dor cria a noção; a indignação, o conceito; a dignidade, o discurso. 

Retomando as palavras de Marilena Chauí, diríamos que este não é um discurso competente. Nele, os cânones do protocolo científico, apesar de respeitados, não mumificam o saber. O esqueleto teórico-metodológico é apenas o suporte de uma substância viva que pulsa, transpira e nos transmite um sentimento de honestidade radial. A crítica contundente não recorre ao ódio ou ao ressentimento para ser escutada. A liberdade e a igualdade são exigidas, reclamadas. Mas, em nome da fraternidade. Não nos enganemos, esta adesão terna e apaixonada à verdade contra a opressão tem fornecido aquilo que de melhor possuímos nas ciências humanas.

Comentar um trabalho deste gênero exige, portanto, que abdiquemos rapidamente de nossos velhos hábitos de pensar. É inútil, neste caso, duelar com a palavra. Ou, o que é mais
corrente, procurar cindi-la e buscar no verso e reverso de seu âmago a verdadeira intenção, ideologicamente travestida.

O trabalho crítico, aqui, não deve procurar desvendar um suposto sentido latente emudecido pela ruidosa máscara do manifesto. Muito ao contrário, deve deixar-se conduzir pela visibilidade do testemunho daqueles a quem foi dada a palavra. Deve acompanhar a postura da autora, prolongando seus propósitos e intenções, quais sejam, tornar o saber um instrumento de transformações e não um objeto de disputa escolástica.

Neste sentido, o estudo sobre as vicissitudes do negro brasileiro em ascensão social levou-nos, incoercivelmente, a refletir sobre a violência. A violência pareceu-nos a pedra de toque, o núcleo central do problema abordado. Ser negro é ser violentado de forma constante, contínua e cruel, sem pausa ou repouso, por uma dupla injunção: a de encarnar o corpo e os ideais de Ego do sujeito branco e de recusar, negar e anular a presença do corpo negro.

Nisto reside, a nosso ver, a espinha dorsal da violência racista, violência que, mutatis mutandis, poderia ajudar-nos a melhor entender o fardo imposto a todos os excluídos da norma psico-sócio-somática criada pela classe dominante branca ou que se auto define desta maneira.

Em que consiste esta violência? A autora, sem ambiguidades, aponta-nos seu primeiro traço, visto sob o ângulo da dinâmica intrapsíquica. A violência racista do branco é exercida, antes de mais nada, pela impiedosa tendência a destruir a identidade do sujeito negro. Este, através da internalização compulsória e brutal de um ideal de Ego branco, é obrigado a formular para si um projeto identificatório incompatível com as propriedades biológicas do seu corpo. Entre o Ego e seu Ideal cria-se, então, um fosso que o sujeito negro tenta transpor, à custa de sua possibilidade de felicidade, quando não de seu equilíbrio psíquico. 

O Ideal de Ego do negro, em contraposição ao que ocorre regularmente com o branco, é forjado, desrespeitando aquilo que, em linguagem psicanalítica, denominamos regras das
identificações normativas ou estruturantes. Estas regras são aquelas que permitem ao sujeito ultrapassar a fase inicial do desenvolvimento psíquico onde o perfil de sua identidade é desenhado a partir de uma dupla perspectiva:

1º) A perspectiva de olhar e do desejo do agente que ocupa a função materna;
2º) A perspectiva da imagem corporal produzida pelo imaturo aparelho perceptivo da criança. [...]"


Referência:
COSTA, Jurandir Freire. Violência e Psicanálise. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1984. (texto inicialmente publicado como prefácio ao livro "Tornar-se negro", de Neusa Souza.

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