6 de jul. de 2012

“NOTA - De como acabou, em Goiás, o castigo dos cacos quebrados no pescoço – Cora Coralina

 

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Foi com a morte da menina Jesuína. Era minha bisavó quem contava. Eu era pequena, ouvia e chorava. Me parecia eu mesma, a pequena da história.

Havia na cidade, contemporânea de minha bisavó, uma tal de dona Jesuína, senhora apatacada, dona de Teres-Haveres. Sempre encontrada nos velórios, muito solidária com a morte e com os vivos, ali permanecia invariavelmente até que os galos amiudassem. Tinha seus escravos de serviço e de aluguel, entre estes a escrava de dentro, de nome Prudência. Está no completo. Nas medidas exigentes do tempo. Sem preço. Deu a sua sinhá vários crioulos de valor que mais enricaram a velha dona. No fim veio aquela que tomaria o nome de Rola, afilhada e alforriada na Pia, o que era legal e usado no tempo. Rola teve casamento de capela fechada dizendo sua condição de moça-virgem.

Não tardou muito por essas e tais razões e sofismas, a se representar hética. Diziam: gálico do marido. Certo que depois de várias vomitações de sangue (hemoptises) que a levaram, deixou no mundo uma menina que a madrinha batizou também com seu próprio nome-jesuína. A pequena, um fiapo de gente, veio para os braços da avó, trazida pela sinhá madrinha. Filha de mãe hética, débil, franzina, foi espigando devagarinho, imperceptivelmente, mamando no seio fecundo da negra avó que fez renascer o seu veio de leite por amor à neta. Certo, ia vivendo e crescendo dentro das regras do tempo velho. Nem escrava, nem forra. Meio a meio em boa disciplina.

Não era má, dona Jesuína, antes de boa justiça, madurona, severa, experiente.
Jesuína encostou-se afinal nos dez anos. Magrinha, grande olhos de espanto para a vida. Medrosa, obediente, agarrada a sua regalia uma boneca de pano que a madrinha teve a bondade de consentir.

Em qualquer pequena falta, a ameaça: "olha que eu tomo a boneca..." A menina apertava a bruxa no peito magro e se espiritava.

Tinha algumas obrigações. Varria a casa, apanhava o cisco. Lavava umas tantas peças de louça e aprendia a ler. Tinha, nas vagas, sua carta de a-bê-cê, sentadinha no canto, tomando propósito.

Dormia numa esteirinha nos pés da grande marquesa de sobrecéu armado, da madrinha. Velhos pedaços de forro eram a coberta.
A obrigação: de pela manhã descer os tampos da janela, apagar a lamparina de azeite, chegar as chinelas nos pés reumáticos da madrinha, apresentar o urinol para os alívios da velha. Regra certa, imutável, consolidada, sem variação. Um chamado - Jesuína, a menina de pé, pedindo a bênção, praticando a obediência.
Aconteceu que um dia a tampa da terrina escapuliu das mãos da menina e escacou. Foi um escarcéu. Dona Jesuína estremeceu em severidades visíveis, e se conteve: "que não fizesse outra..."

Teria contudo de ser castigada, exemplada: um colar de cacos quebrados no pescoço e a bruxa consumida. Proibido chorar. Assim era e assim foi. Coisas do tempo velho. A cacaria serrilhada, amarrada a espaço num cordão encerado, ficava como humilhante castigo exemplar, de que todos se riam até que num longíncuo dia santo alguém se lembrasse de punir por aquela retirada.

No caso da menina continuava. Dormia e acordava com seu colar de pedaços desiguais e serilhados de jeito a permanência. Tinha nas casas gente afeita a essas artes, elaboravam com simetria e gosto maldoso. Naqueles tempos refastados, qualquer castigo agradava e eram agravados com motes e aprovação convincentes.

Aconteceu que, naquela noite, dona Jesuína foi acordada com uns resmungos, gemidos quase, vindos da esteirinha. Ralhou: "Aquieta muleca, deixa a gente durmi..."

Tudo aquietou e a noite continuou seu giro no espaço e no tempo. Na alcova, o círculo amarelo da velha lamparina de azeite. Os quadros de santos imóveis nas paredes. Depois novo resmungo, uns gemidinhos, coisa de menor.
De novo, a velha da sua alta marquesa: "vira de banda, menina, isso é pisadeira, não vai mijá na esteira..."

O silêncio se fez. A velha voltou ao sono, acordou nas horas. "Jesuína, Jesuína." Nada de resposta. Comentou: "pois é, enche o bucho, vem pisadeira, não deixa durmi, e de manhã ferra no sono".

A lamparina, sua luz escassa e amarelada em meia claridade. Dona Jesuína desceu as pernas, os pés deram um molhado visguento e frio. _ "Pois é, enche a barriga e ainda suja na esteira..."Jesuína”, gritou forte. No silêncio da alcova os santos veneráveis, frios, hieráticos. A velha abriu a janela num repelão.

Abaixou, sacudiu a menina. Recuou. A criança estava fria, endurecida e morta. A esteirinha encharcada. Durante a noite, no sono, uma aresta mais viva de um dos cacos serrilhados tinha cortado uma veiazinha do seu pescoço, e por ali tinha no correr da noite esvaído seu pouco sangue e ela estava enrodilhada, imobilizada para sempre.

A notícia correu. As amigas de dona Jesu vieram e deram pêsames, justificando: foi a mãe que veio buscar a filha.

Foi assim, com o sacrifício da menina Jesuína, desaparecendo em Goiás o castigo exemplar do colar de cacos quebrados no pescoço. Quando chegou a minha vez já era só um caco.

 

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No meu sono de criança, tinha a sensação de uma sombra debruçada em mim. Era minha bisavó ajeitando o caco, tirando para fora da coberta.
Não fosse acontecer com Aninha o que acontecera com a menina Jesuína, cria da dona Jesu.”

CONTO DA ESCRITORA E POETISA CORA CORALINA – do livro POEMAS DOS BECOS DE GOIÁS E ESTÓRIAS MAIS

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