8 de jun. de 2012

Sensibilizar, capacitar, denunciar e acolher: quatro passos importantes e decisivos no enfrentamento do INCESTO.

 

Mariza Alberton

 

 

 

 

Mariza Alberton*

 

Há muitos anos venho me dedicando ao estudo da violência, em especial, violência sexual contra crianças e adolescentes. E, dentre todas as modalidades, destaco a violação sexual intrafamiliar ou incesto como a mais complexa, mais danosa, de difícil solução. Isto porque é praticada por pessoas que têm o dever primeiro de cuidar, proteger, amparar e, ao invés disso, maltratam, abusam, desrespeitam. Porque a criança e o adolescente, via de regra, têm afeto pelo abusador e, por isso a vítima vive o terrível drama da ambiguidade, extremamente fragilizada, vulnerável, confusa - dividida entre dois sentimentos opostos: amor e ódio! Porque o abusador incute no abusado a ideia de profunda e irreparável culpa que, destruindo a autoestima, deprime, consome, aniquila e impede a vítima de denunciar. Porque tudo o que acontece entre as quatro paredes do “lar doce lar” reveste-se com a áurea da sacralidade, que torna os segredos domésticos indevassáveis, inconfessáveis, indecifráveis!

Incesto: o cuidado parental substituído por carinho erotizado!

Crianças e adolescentes veem suas vidas desqualificadas; destruídos seus sonhos, suas esperanças... Morrem, a cada dia, simbolicamente ou na verdadeira acepção da palavra.

Ao me deparar com as sobreviventes de incesto, constato que as vítimas podem ser diferentes, os algozes também, os lugares, mas as consequências sempre são muito parecidas.

Há algum tempo, desafiada a escrever sobre o tema “incesto” a fim de participar de uma publicação coletiva, relembrando os casos com os quais tenho me deparado em minha vida profissional, me veio à mente o drama vivenciado por Ignez – cabelos loiros cacheados, mimosa, uma jovem de aparência frágil, mas de grande resiliência diante do sofrimento prolongado. Sobrevivente de incesto, violentada dos nove aos dezesseis anos. Já adulta, despindo-se de culpas e preconceitos, encorajou-se a procurar tratamento e a denunciar seu próprio pai. Certa vez mostrou para mim e para a sua terapeuta uma boneca velha, encardida, com as roupas surradas em desalinho. Confidenciou que no desespero que a consumia, sozinha, prisioneira de suas angustias e dores, costumava, ao longo dos anos, conversar com sua boneca, única companheira em seus dias e noites de solidão. Foi assim que, imaginando a cumplicidade silenciosa de uma boneca com alguém torturado por sentimentos inconfessáveis, na madrugada do dia 1º de novembro de 2006, escrevi o seguinte poema, homenagem à Ignez e a tantas outras meninas vítimas inocentes de crime tão brutal:

MONÓLOGO

Ah! Minha boneca!

Há tanto tempo em minha mão.

És de pano,

não tens coração,

mas sabes de toda a angústia,

que povoa, ano a ano,

meus dias de solidão.

Sou prisioneira!

És a única companheira

na vida sem ilusão!

A boneca escuta,

muda,

o meu lamento,

mas nem por um momento

entende,

nem compreende

o que se passa ao seu redor.

A boneca surda,

não responde.

Nem dá sinal de vida!

Se ouviu o meu lamento,

disfarça,

finge que não vê meu sofrimento.

Boneca cega!

Não enxergas tudo que padeço?

Esta é a vida que mereço?

Tu és simplesmente uma boneca.

Bruxa.

Cinderela ou rainha.

Surda, muda e cega,

mas tua vida é bem melhor que a minha!

Se tens pai,

ele, por certo, é diferente,

porque boneco não é gente.

Assim, com certeza,

ele te ama,

e não te leva para a cama

à guisa de carinho,

- engano ledo! -

nem te forças ao segredo,

para ocultar o que se faz no ninho.

Na vida de “faz de conta”,

tudo pode acontecer:

voar,

ser livre

da manhã até o anoitecer.

Ser bruxa,

Cinderela ou rainha,

qualquer coisa pra não ser criança

e ter vida dolorosa igual a minha.

Meu pai,

o que fizeste com o meu viver?

Me destruístes,

podes crer!...

Quisera ser bruxa,

Cinderela ou rainha...

Vida de “faz de conta”

é bem melhor que a minha!

Por isso eu digo,

firmemente,

é melhor ser boneca

que ser gente!

Mariza Alberton

Para aplacar a terrível chaga que corrói, que destrói, que aniquila a vida das vítimas de incesto, é fundamental que tenhamos um olhar e uma escuta de extrema sensibilidade, competentes e comprometidos. Livres de todo e qualquer preconceito ou pré-julgamento, precisamos acreditar na palavra da criança. Acolher as vítimas, incondicionalmente. Nessa caminhada, não podemos - jamais! - nos transformar em bonecos sem coração, surdos, mudos, cegos...

Coordeno o Movimento pelo Fim da Violência e Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes/RS, que foi criado em 1993, em Porto Alegre. Dentro do Movimento, represento a Pastoral do Menor - organismo da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) - cuja missão é promover e defender a vida de crianças e adolescentes empobrecidos e em situação de vulnerabilidade pessoal e social.

Desde 2004, como Pastoral e, consequentemente, como Movimento, temos a representação do Rio Grande do Sul no Comitê Nacional de Enfrentamento à Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes.

O Movimento pelo Fim da Violência e Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes/RS é uma instância de âmbito estadual. Constitui-se em um espaço aberto, permanente e interinstitucional de controle, denúncia, pesquisa, capacitação, proposição de políticas públicas e fortalecimento de redes, bem como de articulação e de mobilização de toda a sociedade na defesa dos direitos da Criança e do Adolescente, em conformidade com o princípio da Doutrina de Proteção Integral.

Tem como objetivo específico fortalecer a luta pelo cumprimento da Lei Federal nº.8.069/90, Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA - enfrentando todas as formas de violência e exploração sexual praticadas contra as crianças e os adolescentes.

Congrega profissionais das áreas do direito, da saúde, educação, comunicação, assistência social; psicólogos, sociólogos, militantes de direitos humanos; organizações governamentais e não governamentais; comitês de proteção à criança, hospitais, igrejas, pastorais, conselhos, fóruns, movimentos populares, parlamentares.

São muitos os objetivos gerais desse Movimento, mas desde a sua fundação, temos nos empenhado, tenazmente, na consecução de duas metas que, no nosso entendimento, são primordiais para consolidar o seu objetivo específico: estimular a formação da consciência crítica da denúncia e trabalhar na capacitação de profissionais da área da saúde, conselheiros tutelares, educadores, gestores públicos e, consequentemente, na capacitação das próprias redes de proteção.

Entendemos que a violência que se abate sobre a nossa infância é um fenômeno cultural aliado às questões de gênero, etnia e, indiscutivelmente, à ideia de poder, de dominação, de sujeição geracional.

Ainda, nos dias de hoje, temos no Brasil – herança da colonização europeia - uma sociedade adultocêntrica, onde a criança, cidadã de segunda classe, é considerada propriedade dos adultos. A essa concepção, agrega-se o modelo de sociedade machista, patriarcal, onde as mulheres e meninas são desvalorizadas e desconsideradas. Quando, em uma perspectiva sexista, são olhadas como fêmeas, estão subordinadas aos caprichos e desejos - de toda a natureza e os mais sórdidos - dos machos.

O incesto insere-se neste contexto. Quando os responsáveis por uma criança ou um adolescente os veem como propriedade sua, quando enxergam nas mulheres apenas a genitália e as consideram com “objetos de cama e mesa”, estão a um passo de se tornarem um abusador sexual. Usarem suas próprias filhas (enteadas, netas, sobrinhas, alunas) para satisfazerem seus apetites sexuais torna-se uma obsessão e a partir daí fazem de tudo para alcançarem seus objetivos.

Em um panorama como esse, resta-nos sensibilizar, informar, formar e denunciar com o firme propósito de desconstruir os paradigmas impostos durante séculos, que vêm se perpetuando de geração em geração.

Violência, incluindo o incesto, é uma manifestação abusiva de poder capaz de ignorar, ofender, humilhar, oprimir, explorar, machucar e até mesmo matar.

Quando as pessoas silenciam diante de um ato violento ou de um contexto sociocultural adverso, elas se tornam cúmplices dos agressores, partícipes dos atos abusivos.

Para denunciar, em primeiro lugar, temos que ser sensíveis e solidários. Conhecer, minimamente, os mecanismos que regem o fenômeno, é, com certeza, o passo seguinte. Daí o meu empenho em sensibilizar e capacitar a comunidade, tendo transformado essas metas em ideal de minha própria vida.

Banalizar a violência é a forma mais covarde de permitir que ela se perpetue.

Posso afirmar que, em todos estes anos em que tenho me dedicado à defesa dos direitos humanos da infância e da juventude, deparo-me com incontáveis situações de violência, dor e desrespeito. Cada caso mais triste do que o outro, mais infame, mais perverso!... Mas - Graças a Deus! – a gente não se acostuma, jamais!

- Trecho extraído do capítulo “Incesto: da insustentável convivência à difícil revelação”, que faz parte da obra coletiva “Incesto e Alienação Parental: realidades que a Justiça insiste em não ver”, coordenação Maria Berenice Dias, - 2.ed.rev.,atual e ampl. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010.

* Mariza Silveira Alberton – professora de matemática; especialista na área da Violência contra Crianças e Adolescentes; Coordenadora do Movimento pelo Fim da Violência e Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes/RS e do Comitê Estadual de Enfrentamento à VSCA/RS. Ponto focal do Comitê Nacional no Rio Grande do Sul. Autora do livro “Violação da Infância – Crimes abomináveis: humilham, machucam, torturam e matam!”

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